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Purgatório, Canto 1

Saindo do Inferno, Dante respira novamente o ar puro e vê fulgentíssimas estrelas. Encontra-se na ilha do Purgatório. O guardião da ilha, Catão Uticense, pergunta aos dois poetas qual é o motivo da sua jornada. Ele os instrui, depois, sobre o que devem fazer antes de iniciar a subida do monte.


O céu começava a tingir-se de um azul suave, como um zaffiro oriental, e eu sentia o peso da escuridão se afastando. O ar ao meu redor, antes denso e pesado, agora se tornava mais leve, permitindo que meus pulmões respirassem novamente. Era como se o tormento da jornada pelo Inferno estivesse, finalmente, atrás de nós. O horizonte se abria à minha frente, iluminado pelo planeta Vênus, sua luz suave e reconfortante, anunciando a chegada de um novo dia. À medida que meus olhos se ajustavam à nova paisagem, me voltei para o céu e avistei, pela primeira vez, quatro estrelas brilhantes, tão belas e puras que me perguntei como era possível que, até aquele momento, eu nunca as tivesse visto. Elas reluziam com uma serenidade que parecia carregar consigo promessas de redenção e esperança. "O céu do norte está vazio dessas estrelas", pensei, lamentando os que viviam na escuridão, sem a graça de testemunhar tal espetáculo.

Enquanto eu ainda me deixava envolver por essa visão, uma presença imponente se fez sentir ao meu lado. Virei-me e vi um ancião de semblante austero, de respeito quase divino. Sua barba longa e grisalha e os cabelos brancos caíam sobre seu peito em duas grossas mechas. A luz das quatro estrelas refletia em seu rosto, envolvendo-o em uma aura que parecia divinal. Ele nos encarava com um olhar solene, que exigia uma reverência quase automática. Suas primeiras palavras, carregadas de autoridade e curiosidade, foram dirigidas a nós como se tentassem decifrar nossa presença ali. “Quem sois vós que fugistes da eterna prisão? Quem vos guiou por entre as trevas infernais, desafiando as leis do abismo?”

Antes que eu pudesse responder, meu guia, Virgílio, tomou a dianteira. Com uma mescla de palavras e gestos, ele me incentivou a inclinar a cabeça em reverência. Com sua voz firme, Virgílio explicou que eu não pertencia àqueles condenados, que minha jornada havia sido movida pelo desejo de uma mulher vinda do céu, e que eu buscava redenção. Ele contou ao ancião como fomos guiados até ali, e como esperávamos seguir em frente, para enfim alcançar a purificação. Com paciência, ele respondeu às dúvidas do ancião, relatando os detalhes de nossa passagem pelo Inferno, até a margem daquele lugar onde a alma se purga para se tornar digna do paraíso.

O ancião, no entanto, não parecia convencido de imediato. Ele mencionou uma lei antiga que, segundo ele, o impedia de se comover com os apelos de Marcia, sua amada de tempos passados, agora do outro lado do rio da morte. “Mas se é uma senhora celeste quem vos conduz,” disse ele, “então não há necessidade de persuasão. Vou permitir que prossigam, mas antes, é necessário que ele se purifique. Leva-o até a margem, lava seu rosto da mancha do inferno e cinge sua cintura com um junco humilde.”

E, com essas palavras, ele desapareceu, deixando um vazio quase palpável ao nosso redor. Virgílio se aproximou de mim em silêncio, seus olhos fixos nos meus, e indicou que eu o seguisse. Caminhamos juntos, em direção à luz do amanhecer, que agora começava a vencer as sombras da noite. À medida que nos aproximávamos da costa, a terra parecia quase vibrar com o toque suave da brisa, o cheiro salgado do mar alcançando minhas narinas e trazendo consigo uma sensação de renascimento.

Quando chegamos à beira do oceano, Virgílio se abaixou e, com delicadeza, espalhou a água nas folhas da grama úmida. Ele fez um sinal para que eu me aproximasse, e eu, sem hesitar, inclinei meu rosto em sua direção. Com um gesto suave, mas firme, ele limpou o que restava da sujeira infernal, revelando um novo eu, mais leve, mais limpo. Sentia que, de certa forma, aquele ato simples simbolizava a minha nova chance, uma redenção que começava ali, na areia daquela praia deserta.

Depois de purificado, Virgílio me conduziu até um junco que crescia próximo da água. Ele o arrancou com cuidado e, num gesto que parecia quase ritualístico, envolveu minha cintura com aquela planta humilde. E então, algo extraordinário aconteceu: o junco que havia sido arrancado cresceu novamente, como se a terra, ou algo maior, estivesse recompensando aquele ato de humildade.

Aquele lugar, até então desconhecido por mim, começava a se mostrar mais familiar. Havia uma serenidade ali que eu não sentia há muito tempo, uma promessa de que, apesar de tudo o que havia visto no Inferno, havia um caminho para a redenção.

próximo